quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A atmosfera está sendo extremamente didática....e mesmo assim muita gente ainda não "olha para cima" !!

Quem estuda o clima em mudança e tem a percepção de que os eventos extremos estarão cada vez mais frequentes e mais intensos, está tendo nesses últimos meses uma contribuição muito didática do sistema climático. A maior parte do mês de dezembro foi marcada pela configuração da Zona de Convergência do Atlântico Sul - ZCAS na Bahia, o que se repetiu nos primeiros 12 a 13 dias do mês de janeiro nos estados de Minas Gerais, Espírito Santo e norte do Rio de Janeiro. Para quem tiver curiosidade este artigo da Louise Aguiar ilustra bem a relação da ZCAS com os desastres ambientais destas regiões ( https://link.springer.com/article/10.1007/s11069-021-04926-z ).

Mas depois deste período, com a estabilização do Pacífico Equatorial (La Niña), os bloqueios voltaram a predominar na atmosfera de grande parte da América do Sul, trazendo ondas de calor e a previsão de um enorme período sem ocorrência de precipitação significativa (exceto pancadas de chuva de final do dia, devido a convecção local associada com as altas temperaturas) que se estenderá pelo norte da região Sul, maior parte das regiões Sudeste, Centro-Oeste e pelo Centro-sul da região Nordeste. Essa falta de chuva significativa e calor extremo pode se estender até, no mínimo, os primeiros dias de fevereiro. 

Ou seja, assim estamos no nosso período úmido até agora: chuva acima da média, seguida de desastres ambientais, perdas de vidas humanas, barragens (criminosas) ameaçando romper e depois, estiagem prolongada e quase generalizada e ondas e mais ondas de calor. Onde fica o meio termo? Aparentemente ele nos deixou quando "saímos" da estabilidade climática do Holoceno (quando a maior parte da vida do planeta prosperou, como em nenhum período anterior, devido a estabilidade climática) e entramos no desequilíbrio total do Antropoceno, onde nossa interferência está cada vez mais nítida e presente, ameaçando o equilíbrio do planeta e a nossa própria existência. 

No artigo que tive a oportunidade de participar com o Augusto Getirana e com a Renata Libonati ( https://www.nature.com/articles/d41586-021-03625-w) discutimos os impactos da crise hídrica no Brasil, dentro de uma perspectiva local e global. 

Pelos estudos que estamos realizando em nosso grupo de bloqueios, que tem a participação do Eric Ribeiro, Lis Andrade, Rafael Barros, Augusto Lima e Gabriel Almeida, este padrão que estamos vivendo agora, de predomínio e intensificação de bloqueios atmosféricos (que inibem e impedem a formação de chuva) pode estar ligado a uma variabilidade de baixa frequência, muito provavelmente relacionada às ações humanas que levaram ao aquecimento do Atlântico Equatorial (artigo saindo do forno). Ou seja, mesmo com a configuração da La Niña, que está aparentemente tendo um novo significado para as chuvas no país, pelo menos durante a sua fase de intensificação, estas chuvas ocorridas, principalmente em outubro e no início de janeiro, não revertem este quadro.  Isto se deve ao fato destas chuvas estarem associadas a uma variabilidade de mais alta frequência que, aparentemente, estava atenuando e impossibilitando a configuração de bloqueios e não necessariamente mudando conjunturalmente o quadro de escassez hídrica e de risco energético. 

Aliás, muito estranho ver o Ministro de Minas e Energia avaliar que "não ocorreu crise de energia no Brasil". Na verdade é engraçado porque em um governo de negacionismo generalizado, até quando as ações tomadas resultaram em  algo positivo, e que ajudou a solucionar o problema, eles preferem dizer que o problema não existiu. Ou seja, se não fossem os despachos de térmica fora de mérito e os esforços da ANA e ONS para flexibilizar algumas restrições, não teríamos nem chegado em agosto com energia suficiente para garantir o abastecimento. Bem, e se não houve crise energética e tudo foi uma brincadeira, o Ministério Público deveria então acionar o Judiciário pedindo que o Governo Federal reembolsasse toda a população do país que pagou uma conta de luz absurdamente cara (tarifa de escassez hídrica), sem ter nenhum motivo para isso !! Vou ficar esperando.

Por fim, queria trazer uma reflexão: o clima em mudança está trazendo (ou deveria estar) uma percepção de que as ações individuais são capazes de interferir em toda a coletividade e vice-versa. Ou seja, para o bem estar individual precisamos criar ações que permitam a manutenção do planeta e de toda a sua biodiversidade em equilíbrio. O desequilíbrio ocasionado por cada pequena ação de ataque e degradação ao nosso sistema terrestre poderá gerar respostas extremamente violentas e impetuosas, que estão se tornando cada vez mais frequentes e intensas. Ou acordamos e entendemos que todos fazemos parte de um mesmo ecossistema, e que não podemos deixar ninguém pra trás e nem ser deixados para trás por ninguém, ou continuaremos mergulhando cada vez mais e mais fundo no desequilíbrio climático de nosso planeta e colhendo as consequências que, na maioria das vezes, infelizmente recaem sobre as populações mais vulneráveis socioeconomicamente. 

Deixo aqui uma figura (Figura 1)  ilustrando a previsão de temperatura na superfície para o dia 22/01/022 na América do Sul às 15h, obtida a partir das simulações do modelo do centro Europeu (ECMWF) e visualizadas no Windy (https://www.windy.com/pt/-Temperatura-temp?temp,2022012218,-18.244,-35.372,4,m:cPIaeAA ). Dá para notar como o Centro-sul do continente está com temperaturas mais altas (vermelho mais escuro) do que a região próxima a linha do Equador no continente !!


Figura 1 - Previsão de temperatura na superfície para o dia 22/01/022 na América do Sul às 15h, obtida a partir das simulações do modelo do centro Europeu (ECMWF) e visualizadas no Windy