sábado, 28 de agosto de 2021

     

    E quando a crise hídrica finalmente é "enxergada" pelo governo, apenas os consumidores residenciais é que terão que pagar a conta ?

    Fiquei um tempo sem escrever aqui no Blog porque não conseguia mais pensar em como falar da crise hídrica sem entrar em assuntos que envolvessem a responsabilidade do governo e as mudanças climáticas.

    Mas a realidade é que não tem como. Desde a minha primeira postagem, em dezembro de 2020, já mostrava, com base em parâmetros de umidade do solo e na previsão climática para o período úmido realizada pelo LAMMOC/UFF, que o risco de termos um racionamento de energia era muito grande, e que se agravaria caso nenhuma medida mais contundente para a diminuição do consumo fosse tomada, além de medidas técnicas como o despacho de termelétricas fora de mérito, flexibilização de intercâmbio, importação de energia, etc. Mas sempre coloquei que a população deveria ser avisada do risco real para que ela pudesse colaborar com a solução. 

    Sempre ficou bem claro nas postagens que o problema não foi a chuva desse verão, e nem o fato da nossa matriz elétrica ser majoritariamente baseada em fontes renováveis, e sim na nossa pouca capacidade de planejamento de risco energético, já que variáveis importantes para este planejamento só são incorporadas em um curto intervalo de tempo, como a chuva e vento, por exemplo. Além disso, os modelos auto-regressivos utilizados na geração de séries de vazões naturais utilizam um histórico que vem desde 1931, vazões estas obtidas ou estimadas em um planeta totalmente diferente do que temos hoje (em relação a vários fatores como: tipo e cobertura do solo, urbanização, etc).

    Mas tudo isso já foi postado antes, bem como o fato da diminuição da chuva nos subsistemas NE e SE/CO já vir acontecendo a uma década.

    E então, somente nesta última semana foi emitido um relatório descrevendo o risco real de racionamento, com níveis de armazenamento chegando próximos aos que eu havia descrito em uma postagem anterior, feita dia 12 de maio de 2021. E qual a medida do governo ? Aumentar a tarifa e falar para a população "que não adianta chorar". Ou seja, demoraram para assumir um risco iminente de racionamento, que já vinha se desenhando há 10 anos e que havia sido apontado pelos estudos científicos do LAMMOC/UFF desde dezembro de 2020, e, além disso, resolvem colocar toda a conta na mão do consumidor final, mostrando mais uma vez que a ciência e o bom senso não tem voz nesse momento do nosso país.

    Por mais que medidas técnicas importantes estejam sendo tomadas, seria mais justo que o "prejuízo" pela crise hídrica, e pela enorme demora na sua constatação, fosse assumido, em grande parte pela União (afinal a demora nas ações e a dificuldade em entender o problema veio dai) e não exclusivamente pelos consumidores finais. 

    Lembrando do racionamento de 2001, quando eu estava chegando no ONS, uma das medidas que teve maior eficácia na diminuição do consumo foi a isenção de tarifa para baixo consumo e também alguns "bônus" que o consumidor recebia ao diminuir o seu consumo de um mês para o outro. Em 2001, conseguimos evitar um racionamento que poderia ter ido para cortes de carga seletivos, por exemplo, com estas medidas. Além, é claro do aumento da tarifa, o que nem sempre reduzia muito o consumo de quem já paga uma conta de luz alta (não fazia tanta diferença no orçamento), diferente do que acontecia nas residências de baixo consumo. 

    Claro que são medidas que trazem um custo final para toda a sociedade, já que o subsídio da União é repartido por todos, mas não dá para essa responsabilidade ser atribuída somente ao consumidor final, e de uma hora pra outra

    Tentando finalizar, é importante refletirmos sobre tudo o que está acontecendo. Segundo nossos estudos no LAMMOC/UFF, esta diminuição da chuva no NE e SE/CO se deve ao aumento do número de dias com bloqueio atmosférico, o que pode estar ligado à mudanças na temperatura dos oceanos, com origem antropogênica. E agora, para piorar, a umidade proveniente da Floresta Amazônica e Pantanal, que ajuda a intensificar a precipitação associada com a passagem de frentes frias, por exemplo, também está ficando comprometida, graças as nossas ações locais de desmatamento, queimadas e mal uso do solo. E isso tudo pode se voltar contra nós, não só em uma crise de geração de energia, mas também em falta de água para a agricultura, dessedentação animal e até mesmo consumo humano. 

    Ainda valem algumas reflexões e perguntas: nos meses de outubro e novembro possíveis dias com "ondas de calor" podem exigir recursos energéticos extras rapidamente para atender as rampas de carga. E como atender a esta demanda com o sistema no limite ? Como continuar a geração quando os reservatórios ficarem abaixo de 10%, próximos do seu volume morto, quando muita matéria orgânica e inorgânica em decomposição podem emergir e comprometer o maquinário das usinas ?

    Por fim, precisamos urgentemente parar e rever nossas prioridades, investindo fortemente na geração solar (que vem de bônus já que temos menos chuva), tanto para plantas ligadas ao SIN quanto para a geração distribuída (residencial). E mais do que tudo, precisamos entender que o nosso modo de exploração de recursos naturais, práticas agrícolas e pecuárias precisam ser efetivamente mais sustentáveis. Precisamos cada vez de mais fiscalização no campo e nas florestas, e não de fiscais sendo "remanejados" para ficar em casa. Precisamos despertar desta ilusão antropocêntrica e entender que todos os seres e natureza estão conectados, e que a perda de um sempre será a perda de todos. 

    Mais uma vez coloco todo o trabalho científico do LAMMOC/UFF a disposição do Governo e de outras instituições que queiram utilizar estas informações para auxiliar neste momento tão grave de crise hídrica.