sábado, 18 de setembro de 2021

 Não dá mais para passar panos quentes !!

Não tenho conseguido muito tempo para escrever aqui no Blog. Mas acredito que o momento seja muito importante e que precise do esforço de todos os cidadãos para conseguirmos superar essa enorme crise econômica e ainda sanitária. 

Entre as inúmeras atividades e projetos que eu estou envolvido na UFF, entendo que voltar a discutir a crise hídrica realmente seja onde eu possa dar a minha maior contribuição. Apesar de que desde de dezembro de 2020 já venho tentando sensibilizar o governo com este tema, e aparentemente tudo foi em vão. Mas entendo que temos que continuar tentando. 

Bem, em uma recente recomendação da chamada Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética - CREG foi definida, entre outras ações "operem os correspondentes reservatórios até o limite físico de exploração energética, mediante flexibilização de regras operativas que estabeleçam níveis mínimos de armazenamento" (https://www.canalenergia.com.br/noticias/53185631/governo-cria-bandeira-escassez-hidrica-de-r-1420-por-100-kwh ). Essa medida significa, em poucas e diretas palavras, que reconhecemos tecnicamente que não temos condições de atender a demanda mas que politicamente não vamos nos pronunciar e decretar o racionamento. Isso é muito grave !!

Vamos tentar entender: em 2001 para evitar o corte de carga seletivo (aquele que aconteceria de forma programada) o governo da época criou uma série de medidas para diminuir o consumo, visando uma meta de 20% de redução. E dentre estas medidas estavam alguns bônus bastante generosos para os consumidores que diminuíssem o seu consumo de um mês para outro, podendo chegar até a isenção tarifária, em alguns casos. Apesar de eu estar trabalhando no ONS nesta época e lembrar bem, coloco aqui uma fonte ( https://brasilescola.uol.com.br/historiab/apagao.htm ).

Esta medida, mais o próprio decreto de racionamento (que tem o seu impacto em diversos setores de energia), associados a uma conscientização da população, bastante difundida na mídia da época, e outras medidas importantes, foram fundamentais para evitar o corte de carga seletivo. Mas em um processo que durou quase 1 ano. Essa questão do bônus e da redução tarifária para quem diminuísse o consumo foi apontado na época como uma das medidas mais eficazes na redução do consumo. E por que isso ainda não foi feito ? 

Cabe ressaltar que os estudos desenvolvidos pelo LAMMOC/UFF já alertavam sobre esse grande risco de racionamento e a necessidade de medidas efetivas de diminuição de consumo, desde dezembro de 2020. Medidas estas, que se adotadas na época, trariam tempo suficiente para gerar um efeito positivo na redução do consumo e, consequentemente, no aumento do nível dos reservatórios.

Não adianta esperar uma chuva milagrosa. Ela aparentemente não vem para o SE/CO, onde estão os principais reservatórios, pelo menos até de dezembro de 2021. Depois deste período, termos uma inversão de sinal no Pacífico e pode ser que melhore um pouco a condição para ocorrência de chuva, mas ainda estamos com uma condição favorável para a configuração e permanência de bloqueios atmosféricos, como já coloquei em postagens anteriores.

Mas tem ocorrido chuva no Sul do país !! Sim, verdade, e ainda bem. Mas isso não resolve muito o problema. Os armazenamentos do Sul tem uma capacidade muito pequena em relação aos do SE/CO, por exemplo. Quando o ONS precisou aumentar a geração nas usinas deste subsistema o nível dos reservatórios despencou rapidamente (Figura 1). Esta chuva de agora só ajudou a fazer com os níveis parassem de diminuir.

Figura 1 - Nível dos reservatórios da região Sul do pais desde janeiro de 2021 até o dia 16 de setembro de 2021. A linha vermelha corresponde ao ano de 2021 e a linha azul ao ano de 2020. Fonte: http://www.ons.org.br/paginas/conhecimento/acervo-digital/documentos-e-publicacoes?categoria=IPDO

E por que esse pessimismo em relação a chuva?

Primeiro precisamos olhar o nosso nível de umidade no solo, como também já mencionei em outras postagens. A Figura 2 ilustra as anomalias de água no solo até a profundidade de 1.6 metros, em milímetros (a mesma unidade da chuva). Observa-se que existe um grande déficit hídrico na maior parte do país, principalmente nas regiões SE, CO e NE. E o que isso significa? Significa que as primeiras chuvas que ocorrerem nessas regiões servirão, em grade parte, para preencher os espaços vazios do solo e não para se transformarem em vazão. As características do solo são bastante influenciadas por diversos fatores, como as condições hídricas locais e compactação por exemplo, podendo em poucos anos alterar a sua capacidade de retenção de água, apresentando características hidrofóbicas.  Ou seja, precisamos de muita chuva na primavera e de muita chuva no verão em cima dos reservatórios do SE/CO para que os níveis dos reservatórios comece a subir.


Figura 2: Anomalia de umidade no solo na profundidade de até 1.6m em milímetro. Fonte: https://www.cpc.ncep.noaa.gov/products/Global_Monsoons/Global-Monsoon.html

Por último vou trazer aqui uma análise do que esperar do ponto de vista de precipitação para outubro e novembro. 

Ao que tudo indica, pela previsão de quase todos os grandes centros do mundo, estamos caminhando para uma nova La Niña, um pouco mais forte ainda do que a do ano passado. Isso mesmo, estamos indo para uma condição de Pacífico Equatorial semelhante a do ano passado e do Atlântico Equatorial também. Com este tipo de padrão oceânico esperamos muitos dias com bloqueios atmosféricos no SE e CO e que, as poucas frentes que consigam furar este bloqueio, se organizem mais no norte da região e no sul da região Nordeste, trazendo chuva principalmente para as bacias dos rios São Francisco e Tocantins e não para as bacias dos rios Paranaíba e Grande, onde estão os nossos maiores reservatórios.

As figuras 3 e 4 mostram as previsões do modelo rodado no LAMMOC/UFF NCAR/CAM 3.1, adaptado para redução de 15% de Floresta Amazônica em relação a sua base original (que era de 2004). Pode-se observar, que na região dos reservatórios, espera-se até um pouco mais de chuva do que a média em outubro, mas chuva abaixo da média em novembro. O que, associado com a condição crítica de falta de umidade no solo destas regiões, não deverá reverter a queda do nível dos reservatórios neste período. 

Figura 3 - Anomalias de precipitação previstas pelo modelo LAMMOC/NCAR/CAM 3.1 válida para o mês de outubro de 2021. Em destaque a região onde estão os principais reservatórios do país. 

Figura 4 - Anomalias de precipitação previstas pelo modelo LAMMOC/NCAR/CAM 3.1 válida para o mês de novembro de 2021. Em destaque a região onde estão os principais reservatórios do país.

As figuras 5 e 6 mostram as anomalias dos meses de outubro e novembro de 2020, quando estávamos com um cenário climático bastante semelhante ao atual. Ressaltando o padrão de chuva mais recorrente em anos de La Niña, que são anomalias positivas no Norte e parte do Nordeste e negativas no Sul e em parte do SE/CO do país.

Figura 5 - Anomalias de precipitação observadas em outubro de 2020. Fonte: http://clima1.cptec.inpe.br/monitoramentobrasil/pt


Figura 6 - Anomalias de precipitação observadas em novembro de 2020. Fonte: http://clima1.cptec.inpe.br/monitoramentobrasil/pt

Para finalizar esta análise, acredito que não dê mais para passar panos quentes na falta de responsabilidade do Governo Federal em relação a gestão da crise hídrica. A condição dos reservatórios já passou de um nível alarmante para um nível de total falta de segurança, inclusive para o atendimento de rampas de carga de consumo, o que pode levar a apagões localizados, em pleno momento de pandemia e, assim, agravando ainda mais a crise sanitária que estamos vivendo. As medidas adotadas até agora se mostraram ineficientes para conter esta diminuição do nível dos reservatórios e não demonstraram, em seu delineamento, nenhuma capacidade de incluir projeções climáticos em seu  planejamento. Este fato, aliado a alta do dólar e dos combustíveis (apesar da pandemia ter sido global a nossa moeda foi a que mais se desvalorizou dentre os países emergentes - https://economia.ig.com.br/2021-04-19/real-desvalorizacao-pandemia.html) está nos levando a um aumento da inflação, que, por sua vez, irá agravar cada vez mais as desigualdades sociais no país, a pobreza e a fome. Não podemos mais ficar inertes perante tudo o que está acontecendo e o que já aconteceu. Mais uma vez coloco todos os recursos científicos e tecnológicos do LAMMOC/UFF, nossa expertise intelectual e experiência a disposição para auxiliar na gestão desta crise hídrica. 

Agradeço a participação, mais do que especial, da minha esposa e Engenheira Ambiental Larissa Haringer Martins da Silveira nesta postagem.